O véu do esquecimento
- Eu não quero saber, eu não quero saber, não me contem — ela pensava com toda força.
Aos poucos, foi ouvindo uma voz que lhe dizia, volte, sinta você, sinta o tecido da sua cama, no seu travesseiro, toque nas coisas.
No meio dos sentimentos, pegou a figura de Maria que repousava na sua prateleira, chorava, abraçando o edredom como se sentisse seu útero deflorado, como se tivessem cortado seu ventre e arrancado a sua criança.
Continuava ouvindo a voz que dizia para voltar a si, largar, soltar, apegar ao que fosse material, segurou com toda força seu cristal e voltou.
Ainda assustada com a quantidade de coisas, memórias que agora pareciam filmes que tinham sido vistos tempos atrás, não demorou a se perguntar: “Será que fui a vítima, ou o agressor?”
E ela sabia exatamente porque não queria ver, porque implorou para que não visse, pois se fosse o agressor, não se perdoaria.
Era preciso saber quando parar. Às vezes, a sabedoria não estava em “não fazer”, e sim em fazer até o ponto em que não se pode seguir mais. E isso ela sabia, havia aprendido com diversas coisas. Seu perfeccionismo, que era tão criticado em tantos lugares que passou, lhe dava, ao mesmo tempo, um senso de autopreservação.
Obedeça às regras alheias, e quando não sentir que elas te cabem mais, crie as suas próprias. Existem coisas nos seres humanos que são inerentes a sua natureza, quase imutáveis, ou que, para serem mudadas, é preciso tempo, estudo, dedicação. Tempo, verdade e coração.
Até um ser que é livre, ou gostaria de ser completamente livre, deve entender que sem regras, o jogo não funciona. Sem certas peças fundamentais, a engrenagem não roda. É como atear fogo em tudo a sua volta em um lapso de loucura. Se você consegue recobrar sua consciência 3 minutos depois, aquilo que foi queimado não tem salvação.
Por isso, era precisa contar os passos e medir as palavras. Olhar mais do que falar, analisar mais do que sentir. Foi isso que ela foi ensinada. Mas agora a vida estava convidando ela para se aventurar longe dessas fronteiras, onde não existem regras, “mas as minhas próprias, eu vou levar” — pensou.
Mais uma vez, já tranquila, pensou o quanto não queria mais ser convidada para aquelas memórias e sensações, mas não deixou de se perguntar novamente: “Eu fui a vítima ou o/a agressor(a)?”… e escutou:
- Ambos.
Uma alma tão velha não teria nunca escapado das areias sombrias do tempo. Embora agora procurasse a todo custo andar na luz, diminuir sua arrogância e entender seu ego, o que foi feito estava feito. E não havia como retornar e desfazer. E naquele momento agradeceu a ele, o véu do esquecimento.
“Obrigada por me deixar esquecer todo mal que causei. Obrigada por me permitir esquecer o mal que me foi causado. Obrigada por me dar a chance de estar aqui, mais uma vez e me suprindo dos recursos necessários para que eu possa fazer diferente. De frente a Ti, que ainda não compreendo plenamente, que a minha pequenez nunca atrapalhe a minha grandeza, e que a minha grandeza nunca feche meus olhos para o meu Karma e o meu Dharma. Obrigada, Senhor”.
Algumas respostas nós não precisamos ter, apenas sentir.
“Que seja assim” — pensou.
Fechou os olhos, minimizou toda a dor daquela vivência em um cubo rosa, quase transparente, deixando ali na cor um pouco do seu afeto, e jogou ao mar… o mais longe que pode.
Abriu os olhos. Está feito.